Não vai fazer você voltar

Karoline Siqueira
3 min readAug 10, 2023

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Sigo evitando minha casa, o que me lembra você. Me lembra do dia em que cheguei por lá, olhei da janela um por do sol lindo, as cores vibrantes e calmas, e chorei porque não poderia mais te abraçar. Me lembra as horas e dias em que deitei na cama e dormi, tentando apagar o sentimento que me trazia sua falta, tentando fugir da vida.

Sigo evitando minha casa, o cheiro e os aspectos me lembram a limpeza que abandonei, os acúmulos que deixei pra trás e os problemas que não resolvi depois que você se foi. Porque era duro demais existir em um mundo sem você e eu nem sabia como.

Minha casa me lembra como tudo desandou, virou de cabeça pra baixo, como eu praticamente perdi tudo que eu tinha…porque precisava sentir sua falta e o mundo não parou de girar quando você se foi.

Mas o meu mundo — esse sim — parou qualquer rotação. Paralisou, dentro e fora de mim. As coisas já não são como antes, o que fazia sentido se modificou. Minhas vontades, meus desejos, precisaram amadurecer. Minhas obrigações às vezes se tornam tão mais pesadas por saber que não terei o seu colo para pedir ajuda quando tudo começar a desabar.

Não é que eu deitava em seu colo o tempo todo, nem que te ligava todos os dias. É que era importante saber que “qualquer coisa você vem pra minha casa, mora aqui, a gente dá um jeito”. Ou então que eu podia contar com você quando vivia alguns perigos. Eu te pedia socorro e você sempre estava lá.

Eu sei que hoje me defendo bem, eu sei que consigo ser meu próprio colo. Mas faz falta poder sair andando por aí refletindo a vida com você, faz falta a sua existência. Poder te mandar áudio dizendo qualquer besteira, receber a resposta rápida e — 10 dias depois — outra mensagem reclamando da minha demora pra responder. Se eu soubesse que você iria embora tão cedo, eu teria respondido tudo tão mais rápido.

Às vezes eu ainda te mando mensagem pelo whatsapp, dizendo que sinto sua falta. A coisa de ter um pauzinho cinza só me mata por dentro, porque ela confirma que você nunca mais vai receber. Nunca mais. Às vezes eu converso com você na minha mente (quase todo dia, na verdade) pra tentar manter o pouco de fé que ainda restou nos meus passos.

Tem sido cada vez mais possível levantar da cama. E digo possível, porque realmente tá longe de ser o ideal. Esses dias senti mais energia pra trabalhar — e por consequência trabalhei vários dias até tarde, pra tentar aproveitar uma energia que sei — hora ou outra — vai me escapar pelos dedos; quando uma lembrança repentina me invadir todo o corpo e dizer “ele não vive mais aqui”. Essas lembranças tem se tornado menos frequentes, mas elas ainda aparecem e me desencadeiam crises de choro e ansiedade.

Tem sido difícil encarar minha casa, voltar pra lá. Eu tenho evitado. Preciso voltar, arrumar minhas coisas, cuidar do cachorro, organizar meu espaço, encarar os aluguéis acumulados. Eu só queria abandonar, mudar de casa e começar de novo uma vida aonde eu não precise encarar a dor de que — desde que você se foi — eu me perdi inteira. Eu larguei tudo.

Luto. Luto. Eu vivo falando em luto, poucas são as pessoas que sobraram com alguma compreensão. A maior parte delas me compreendeu apenas nos primeiros 10 dias e, depois, voltou a me cobrar tal qual um chefe capitalista. Inclusive as pessoas mais íntimas.

Às vezes eu queria desaparecer por horas e ir para um espaço-tempo no qual você ainda existe. Observar a paisagem, refletir sobre a vida (como fazíamos nas suas ligações sempre curiosas e interessadas). Às vezes eu queria desaparecer por horas do mundo real, mas não dá.

Não dá. Então, por hora, só vou reunindo forças: para virar noites trabalhando o trabalho acumulado; para escrever longos e-mails resolvendo burocracias de contas não pagas; para esquivar das brigas que não fazem o menor sentido quando se sabe que a vida acaba; para cuidar dos meus filhos, do meu cachorro; para tomar um banho, passar um creme, ficar bonita (embora eu não goste tanto mais de me olhar no espelho desde que você se foi; me olhar no espelho me lembra você).

Tudo me lembra você, pai. Por hora, estou reunindo forças. Mas sigo evitando me encarar. Encarar a vida como ela é não vai fazer você voltar. E essa é a pior parte.

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Karoline Siqueira

Psicóloga, mãe, escritora. Espiritualidade, autoconhecimento, autorregulação emocional e a maternidade real são meus pilares.