O discurso de amor próprio pode ser uma desculpa pra fugir de se relacionar

Será mesmo que amor próprio se constrói na solidão?

Karoline Siqueira
5 min readJul 12, 2021

Minha história desconstruindo essa ideia

Eu fui uma pessoa de inúmeras relações abusivas no passado e, em agosto de 2016, quando tive meu primeiro filho, eu já estava há 7 meses sem me relacionar com ninguém. Ao passo que decidi ficar mais um ano de “abstinência”. Não me relacionei com ninguém por um ano e 7 meses e me enfiei na espiritualidade. Eu precisava de um tempo pra mim, precisava lidar com meus lutos e com a minha intensa transformação pós maternidade. E precisava, além de tudo, aprender a me amar. Dito e (não) feito: eu decidi que só me relacionaria de novo quando estivesse me amando suficientemente.

Conheci uma pessoa um ano depois pela qual eu fiquei enlouquecida instantaneamente (após um ano de celibato, quem não enlouquece numa conexão forte? rs). E então eu tive a relação mais abusiva que poderia ter. Concluí, depois dela, que ainda não me amava suficientemente, e me fechei de novo, entrando nessa ideia de que “amor próprio se constrói sozinha”. Porém, ao me jogar na terapia e no autoconhecimento, eu aprendi MUITO olhando pras minhas antigas relações: sobre fechar ciclos, sobre minhas responsabilidades em cada erro, sobre as escolhas que eu fazia (e porquê as fazia). Foi inevitável não querer continuar me relacionando. Eu segui me abrindo pro amor e, não só isso, eu fui fazer uma especialização de atendimento de casais e comecei a atender casais no meu consultório.

Não preciso nem dizer que isso revolucionou meus sentidos de relacionamento, não é? Pois bem. Eu fui entendendo que a cada nova relação que me aparecia, quanto mais eu me olhava e me trabalhava, mais maduro e melhor era aquele relacionamento. Me sentia subindo numa escadinha onde os abusos começavam a desaparecer, a cada passo a comunicação começava a melhorar e meu reconhecimento do que eu esperava das relações também evoluía. Eu observava a mesma dinâmica na clínica: os casais dispostos a olharem pra si dentro de uma relação evoluíam aquela conexão e se desenvolviam pessoalmente. Vivi na pele o que já estava formado na minha cabeça: a gente aprende sobre amor próprio em relação com o outro.

Não existe “aprender a se amar” antes de estar em uma relação.

Esse discurso é o mesmo que busca estar preparado antes de uma experiência de trabalho ou de vida. A gente não se prepara antes de viver, a preparação vem conforme a experiência acontece.

Sim, é importante se dar espaço entre os términos e ter um tempo para lidar com os finais. Às vezes precisamos estar só(s) para sentir a própria companhia e os lutos dos fins. Porém, aprender a se amar passa, necessariamente, por se entender estando dentro das relações. E esse entendimento é impossível sem o outro pra nos espelhar.

Eu sempre reforço o quanto seres humanos são sociais e dependem de relações e conexões pra viver. Isso é biológico, faz parte da evolução, não teríamos chegado tão longe se não fosse nossa capacidade - e necessidade - de estar em grupo e se relacionar. O relacionar-se é parte importante da nossa composição. Amar e se sentir amado(a) faz bem pra gente, isso é inegável. Não só no amor romântico, mas nas amizades, nas relações familiares, nos grupos que participamos: queremos nos sentir pertencentes na vida.

O discurso do amor próprio — nesse viés de “estar só e se amar completamente antes de se relacionar” — parece atravessar o momento de individualismo exagerado da nossa cultura. Isso é reflexo de um tempo em que estamos cada vez mais conectado(a)s por meio de telas, cada vez mais dentro de uma competição capitalista, correndo pra ver quem ganha mais, e cada vez menos junto(a)s. Mas essa solidão, ao contrário do que defende esse discurso do “amor próprio”, acaba com a saúde mental das pessoas.

Sim, é mais fácil estar só e não ter que lidar com pessoas diferentes, não precisar dialogar nossas ideias, nem se posicionar ou negociar acordos (verbais ou não verbais) dentro das relações. Evidente que é mais fácil. Mas será que é o que nos deixa mais felizes? Não podemos dizer que isso vai trazer felicidade plena, que essa é a receita, muito menos que vai fazer com que aprendamos a estar em uma relação. Não tem como aprender a jogar vôlei fora do campo. Assim como só se aprende a se relacionar: relacionando.

Evitar relações, na verdade, é mais uma questão de evitação-fuga, do que de fato uma escolha pra se cuidar. Embora o discurso seja “estou cuidando de mim”, o que se observa em maior parte das pessoas é — na verdade — um medo tão grande de se magoar e confiar novamente, junto a uma dificuldade de estar vulnerável, que se afastar das possibilidades de relações acaba sendo menos angustiante ao lidar com aquela dor. Fugir pode até funcionar por um tempo, em alguns momentos pode ser útil pra que tenhamos espaço e reorganizar a bagunça; porém, fugir pra sempre só cria mais solidão e desemparo. A pessoa que não se adequa a nenhum grupo, ou não se relaciona com outras pessoas por um tempo muito estendido: aumenta seu sentimento de incapacidade e inadequação, diminui a autoestima, diminui seu nível de autoconhecimento e acaba adoecendo (em maior parte dos casos).

Eu tendo a reforçar o quanto, no final, sempre vale mais a pena estar em relações, mesmo que isso envolva uma série de desgastes — que por sua vez se tornam valiosos aprendizados. Aprender a estar vulnerável, a dialogar, a se conectar, a trocar genuinamente: todos esses sentimentos nos aterrorizam e, por isso, nos fazem querer fugir. Natural, já não estamos mais vivendo nossas primeiras relações, esse tempo de primeiras paixões para “se jogar de cabeça” já passou para muitos de nós; hoje temos uma coleção de dores e decepções passadas. Porém: se não conseguirmos fechar capítulos passados, não nos relacionaremos com as pessoas que estão na nossa frente, mas sim com fantasmas dos nossos “ex” relacionamentos. E isso sim gera frustração e medo.

Mas eu reforço: vale a pena se relacionar quando o que se encontra do outro lado é o afeto. O afeto é curativo e revolucionário em todos os sentidos. Na nossa cultura: afeto é o que constrói o caminho que resiste ao individualismo e à solidão. E o outro nos faz enxergar partes importantes de nós; sem um outro, não há autoconhecimento. O desenvolvimento de bebês humanos, por exemplo, acontece a medida que ele atravessa uma fase na qual se enxerga como parte independente das mães/pais/cuidadores no mundo. É à medida que se enxerga o outro que há possibilidade de se enxergar também. Somos juntos. Somos, porque o outro existe.

Então sim: aprenda a estar só, a curtir a própria companhia, a lidar com você, a questionar seus abusos e comportamentos tóxicos (todo mundo tem). Aprenda a não projetar no outro suas insatisfações e incompletudes; aprenda a se aceitar como “incompleto”. Encare sua vulnerabilidade. Mas, entenda uma coisa: é possível fazer isso em paralelo com o relacionar-se; não só possível: é necessário. Todo(a)s estamos aprendendo — junto(a)s — a ressiginificar as relações e construir padrões mais saudáveis.

Cuide de você mas, em paralelo, cuide também do outro e assim — somente assim — verá sua evolução no amor. Amar outras pessoas não é muito diferente de amar você mesmo(a); não é possível se amar odiando as pessoas que te rodeiam. Ninguém é feliz sozinho(a). Relembrando uma lição muito importante de uma experiência real retratada no filme “na natureza selvagem”: “a felicidade só é real, quando compartilhada”. Compartilhe sua felicidade e quem você é de fato, o mundo merece te enxergar e você merece ser visto(a).

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Karoline Siqueira

Psicóloga, mãe, escritora. Espiritualidade, autoconhecimento, autorregulação emocional e a maternidade real são meus pilares.